sexta-feira, 9 de novembro de 2007

TROPAS DAS ELITES

De acordo com o filme “Tropa de elite”, “favelado bom é favelado morto”
por peruano — Última modificação 02/11/2007 09:18
Vito Giannotti


“HOMENS DE preto, qual é sua missão? É entrar na favela e deixar corpo no chão”. Começo este artigo copiando a abertura de outros dois artigos dos que mais gostei no mar de análises sobre o filme “Tropa de elite”. Cláudia Santiago e Ivan Pinheiro iniciam seus textos reproduzindo o refrão cantado pelo Bope nos seus treinamentos. É nele, exatamente, que está a linha geral do filme que, independentemente das intenções do produtor e dos atores, é um hino ao Bope (Batalhão de Operações Especiais que atua nas favelas do Rio). Nesse refrão, está a mensagem central do filme.
Discute-se muito se o filme é de direita, se é fascista ou nazista. Para mim, ele contribui para consolidar, entre a população, a idéia de legitimidade das ações policiais que exterminam pobres e moradores de favelas no Rio de Janeiro. E faz isso no momento em que militantes de direitos humanos travam, na cidade, uma luta para pôr fim a essa violência. Fruto dessa batalha, inclusive, foi criada a Rede Nacional de Jornalistas Populares que, em seu lançamento, contou com a presença da mãe de uma das vítimas da violência policial.
Ou seja, independentemente da vontade de seus executores, o filme serve muito bem às idéias que a direita semeou: todo pobre é perigoso, é ladrão, é bandido. Todos. Basta ser pobre, de preferência negro, para ser, no mínimo, suspeito.
Se a missão do Bope é “entrar na favela e deixar corpo no chão”, a mensagem que o filme passa é de que na favela só tem criminoso, assassino, traficante a ser deixado no chão. Essa é a primeira, a segunda, a terceira, a quarta idéia do filme. É a idéia mais nociva.
Ivan Pinheiro, ao final do seu artigo, propõe uma interpretação, com a qual estou de acordo, sobre o resultado ideológico- político do filme: “Em qualquer país em que “Tropa de elite” passar, principalmente nos Estados Unidos e na Europa, o filme estará contribuindo para que a sociedade se torne mais fascista e mais intolerante com os negros, os imigrantes de países periféricos e delinqüentes de baixa renda”.

Um festival de idéias de direita
Há um hábito, no Brasil, de quase ninguém se assumir como de direita. Hoje, esse costume se reforça com a balela de que direita e esquerda não existem mais. Acabou tudo. O filme nos mostra que, ao contrário, a diferença entre direita e esquerda está mais viva do que nunca.
“Tropa de elite” não só apresenta, por meio da narrativa da filosofia do Bope, um grande quadro de idéias de direita, mas também as mostra de maneira simpática, dinâmica e as justifica. O público, obviamente, se comove com o policial com síndrome de pânico, embora este seja torturador de homens, crianças e mulheres e assassino. E se encanta com aquele que reconhece a miopia do menino. Se é tão bom, é possível compreendê-lo quando se transforma, devido à perda do amigo que queria ajudá-lo, em assassino e torturador. Então, justifica a barbaridade dos homens de preto que têm como missão “entrar na favela e deixar corpo no chão”.
Ou seja, não interessa se de propósito ou não, o filme faz campanha e reforça, no coração e na mente de milhões, idéias contra as quais a esquerda se bate há séculos.
No artigo de Cláudia Santiago existe um roteiro de algumas das idéias altamente nocivas do filme. Ela afirma: “Os membros do Bope são mostrados como heróis incorruptíveis, dispostos a combater o crime a qualquer custo, mesmo que esse custo seja ‘esculachar moradores’, condenar sem julgamento, torturar crianças e companheiras de traficantes e matar”. Para ela, a prática da tortura, da pena de morte aplicada de maneira informal e a ridicularização da luta pelos direitos humanos são algumas das várias lições de direita que o filme dá aos espectadores. A culpa do tráfico jogada em jovens estudantes “maconheiros”, sem procurar os grandes responsáveis pelo tráfico que não querem que ele acabe, é outro ponto forte do filme.

Extermínio dos moradores
O filme faz sucesso por dois motivos: - Trata do tema que mais preocupa a sociedade brasileira: a violência e a segurança.
- Retrata e reproduz as idéias dominantes da sociedade sobre a favela, os pobres, os negros, ideologia espalhada pelos quatro Cavaleiros do Apocalipse da comunicação de direita nacional: Folha de S. Paulo, Estadão, Globo e Veja.
A capa dessa revista, no seu número 2.030, do dia 17, não deixa dúvidas sobre o caráter do filme. A manchete é “Pegou geral”. Em seguida, Veja nos esclarece com a seguinte legenda: “O filme ‘Tropa de elite” é o maior sucesso de nossa história porque trata bandido como bandido e mostra usuário de droga como sócio dos traficantes”.
Essa mensagem, que tanto agrada à revista, não é novidade. Não foi o José Padilha quem as inventou. Sempre se falou que “Bandido bom é bandido morto”. Sempre, entre a classe dominante, desde o tempo da casa-grande e da senzala, existiu o pavor-pânico das “classes perigosas”, isto é, dos pobres. Sempre se confundiu pobre com criminoso. São idéias que têm origem na tradição secular de uma sociedade escravocrata dividida entre a casa-grande e a senzala. O que o filme faz é simplesmente reforçar toda essa ideologia.
Há várias falas e imagens, ao longo do filme que consagram a idéia de que a favela é lugar de bandido: “O farda preta entra na favela para matar”, se ouve lá pelas tantas. Sim, matar. Matar quem? Lógico, aqueles bandidos favelados.

A raiz da guerra do tráfico
Desde as primeiras cenas aparece a tal “guerra”. Guerra de quem contra quem? A quem interessa essa guerra? Por que não se acaba com ela? A única solução que o filme aponta é o extermínio. De quem? Dos generais dessa guerra? Não. Não há chefões, não há gente interessada em não acabar com essa guerra. Ela existe e ponto final.
Quem disse que essa guerra precisa existir? Não há outras hipóteses? Não há a possibilidade de as “drogas serem vendidas em drogarias”? Não há a possibilidade, por meio da liberação, de acabar com o tráfico e com essa guerra? Há muita gente que acha que assim diminuiria o uso de drogas.
Já se tentou imaginar uma sociedade sem tráfico... sem corrupção policial, sem armas contrabandeadas, sem propinas para advogados e juízes? E, sem tráfico de drogas, como ficaria a lavagem de dinheiro praticada por muitas empresas? Outra pergunta: o tráfico é coordenado por quem? Será que os chefes do exército do tráfico são aqueles garotos de olhos esbugalhados que ficam lá no alto dos morros dando tiros sem saber em quem e pra quê? O filme não fala nada sobre essa parte da realidade. Então, não venham me dizer que o filme refletiu a realidade. Não. Re- fletiu a parte da realidade que queria ver. A outra foi deixada no escuro e não vai ser vista por quem o assistir.
A imagem que fica é a do morador de favela, traficante. Esse tem que morrer, porque os heróis que o filme apresenta para nossa sociedade idolatrar, os Bope, vestidos de preto, continuam cantando que sua “missão é entrar na favela e deixar corpo no chão”. Corpo de pobre, evidentemente. Não daqueles que vivem da guerra dos meninos do tráfico contra os homens de preto, que rende bilhões de dólares anuais para os verdadeiros chefões do tráfico.

Vito Giannotti é coordenador do Núcleo Piratininga de Comunicação

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