quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013


As velhas baianas somem da passarela


Em um samba belíssimo, que embalou o carnaval de 1984 da Unidos de Vila Isabel, Martinho da Vila fala dos sonhos da velha baiana, “que foi passista/brincou em ala/dizem que foi o grande amor do mestre-sala”.
Poucos versos abordam com mais felicidade a ideia da escola de samba como uma instituição comunitária, forjadora de elos entre segmentos populares que, à margem das benesses do poder instituído, inventaram mundos e, desta maneira, se apropriaram da vida e produziram cultura. A moça passista, que desfilou como componente de ala, chegou ao final da trajetória ungida baiana, matriarca do samba e de sua gente simples.
Ocorre hoje, porém, um problema da maior gravidade nas escolas de samba, amplamente comentado no meio e, infelizmente, pouco repercutido na imprensa: a velha baiana corre o risco de desaparecer, arrancada das fileiras de sua escola pela conversão às igrejas evangélicas que, cada vez mais fortes, demonizam o samba, o carnaval e suas práticas.
O problema atinge, sobretudo, as escolas mais pobres, que contam basicamente com os componentes das próprias comunidades para fazer o carnaval. São inúmeros os casos de passistas, ritmistas e, sobretudo, baianas, que abandonaram os desfiles atendendo a determinações de pastores. Diversas escolas de pequeno porte já entram na avenida perdendo pontos, pois o regulamento dos desfiles exige um número mínimo de baianas para o cortejo. Onde elas estão? Nas igrejas, ouvindo pregações apocalípticas contra a festa.
Atribuindo ao carnaval um perfil maligno, fundamentando suas críticas em uma arraigada noção de pecado e em uma vaga ideia de redenção, estes líderes religiosos retiram do ambiente das escolas personagens que, até então, tinham ali construído seus elos comunitários mais bonitos. É pecado sambar?
É evidente que tal prática se inscreve numa disputa pelo mercado da fé, cujo motor é o combate pelo maior número possível de fiéis. É óbvio, também, que as escolas de samba têm fortes raízes fincadas nas religiosidades afro-ameríndias, notoriamente na Umbanda e no Candomblé. Sabemos, por exemplo, que algumas baterias de grandes escolas desenvolveram seus toques característicos a partir dos ritmos consagrados aos orixás. A guerra aberta às escolas de samba deve ser compreendida, portanto, em um panorama mais amplo: é um capítulo da guerra santa travada por fundamentalistas cristãos contra as práticas culturais e religiosas dos descendentes de africanos no Brasil.
O efeito é perverso. Ao construir um discurso de salvação, alicerçado em promessas de tempos melhores, os fundamentalistas da fé buscam matar exatamente o que, durante muito tempo, deu a estas pessoas a noção de pertencimento. Não basta, para os arautos do fanatismo, construir uma nova referencia; é necessário matar o que veio antes, arrasar a terra, negar o outro, destruir a tradição. Conhecemos este filme e o final não é feliz.
Resta botar a boca no trombone e torcer para que no peito da velha baiana do samba do Martinho, aquela que cresceu, amou o mestre-sala e envelheceu dentro de sua escola, o arrepio do surdo de marcação, a harmonia do cavaco e os desenhos dos tamborins superem as trombetas da intolerância. Afinal de contas, não é pecado sambar e celebrar a vida.
Luiz Antonio Simas é professor de História


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