terça-feira, 30 de agosto de 2011



Jalmir Oliveira do NOVO JORNAL










Antes de chegar à turma, ao cruzar com um grupo de alunas vendendo bombons, pergunta como andam as vendas. Ouve que o estoque já havia acabado: “Mas vendemos tudo fiado, professora”, diz a aluna. “Não pode, isso está errado. Você vai perder é dinheiro”, adverte Amanda. Por alguns segundos, o aluno-repórter imagina que ela vai aproveitar a ocasião para fazer um inflamado discurso, como aquele que a projetou, na Assembléia Legislativa, dessa vez para condenar o capitalismo selvagem. Ufa! A Amanda professora é mais “maternal” do que a Amanda sindicalista. É a impressão. Depois do comentário, toa seu caminho.

Cheguei com alguns minutos de antecedência à aula da professora Amanda. Dei sorte porque conseguimos driblar com rapidez a série de engarrafamentos ao longo do caminho entre a sede do jornal, na Ribeira, e a Escola Estadual Myriam Coeli, no conjunto Nova Natal, Zona Norte da capital. Era terça-feira, dia 23 de agosto, 15h53, uma tarde de temperatura quente, quando a professora Amanda Gurgel deixou a Sala dos Professores e seguiu até a sala em que ministraria mais uma aula. Sua disciplina é Língua Portuguesa.


Pontualmente às 16h entra em sala de aula. Vai enfrentar a terceira turma do dia. No período vespertino, ela é responsável por seis turmas de ensino médio. Logo que encontra a turma, alguns alunos se espantam: “Já, professora”, grita um. A sala é quente e abafada, com algumas lâmpadas queimadas, fios elétricos à mostra onde deveria haver um interruptor. Os alunos, meus colegas naquela tarde, estão mergulhados nas carteiras. Todas elas estão “entulhada” de pichações. Assim, nesse ambiente sem muita cerimônia, começa a aula.


A lição do dia: os alunos têm de produzir um artigo de opinião sobre a posição da mulher nos meios de comunicação. O repórter, que agora é aluno, tem a ligeira impressão que a escolha do tema tem a ver com a presença da equipe do NOVO JORNAL. Mas releva. Boa parte dos alunos, meus colegas, trouxe de casa redações sobre fatos cotidianos, desde músicas de duplo sentido a programas de TV que tratam a mulher como objeto sexual. “Não devemos ter medo de lutar contra o preconceito. As mulheres não devem ser inferiores”, comenta Audayane Augusto, a primeira aluna a participar do “debate”. Ela é uma dos 16 alunos presentes. Ao todo, a turma tem 29 estudantes. Portanto, treze levaram falta.


Todos são dispostos em círculos para facilitar a comunicação. Amanda ouve a leitura de cada um e aqui e ali faz alguma correção para formular uma tese. “Vocês devem seguir um foco, agarrar a idéia e defendê-la”, ensina. A turma, jovem, é formada quase inteiramente por moradores do bairro. A faixa etária não supera os 18 anos. Alguns dos meus colegas ainda trazem traços infantis em seus rostos. Em quase nada lembrava uma turma do terceiro ano do ensino médio.


Apenas um estudante não quis “declamar” a sua redação. A professora não o expõe. Após alguma insistência, Amanda vai até sua carteira, lê o texto para si e pede para que ele melhore a argumentação: “Me deu um trabalho tão grande escrever isso”, desabafa baixinho o aluno, para um colega. A professora não ouve.


A cada leitura os alunos intervêm, dão sugestões e comentam o assunto lido. É uma aula dinâmica. Uma das mais entusiasmadas é Jhuliana Magalhães, 17 anos. Quando chega sua vez de falar, ela discorre sobre a importância das mulheres lutarem por seu espaço e não mais se sujeitarem às caricaturas sexistas que inundam, diariamente, os meios de comunicação. Mora na comunidade conhecida como Nordelândia, um pouco mais ao norte de Nova Natal, e caminha todo dia cerca de vinte minutos para chegar à escola.


Todos são esforçados, mas é visível a dificuldade que alguns têm para ler e escrever textos simples – e até mesmo para emitir opiniões. Na camisa de alguns desses meus colegas temporários está escrito, em alusão à conclusão do ensino médio: “Que venham os bons, pois os melhores estão saindo”.


Sobre o atraso educacional dos seus alunos, a professora dirá mais tarde ao repórter: “Estou fazendo o possível para recuperar o tempo perdido; mas é esta a realidade de todo o ensino público do estado”. Amanda Gurgel tem boa oratória, o que já se sabe desde que seu discurso na Assembleia Legislativa criticando o salário da categoria ganhou o mundo, dia 5 de maio. A impressão é que ela fala mais rápido do que deveria, mas as frases fluem perfeitas aos ouvidos dos alunos. Porém, com pouco mais de uma hora de aula – a aula dela é demorada – fica quase impossível entender o que tanto ele explica aos alunos. À frente do quadro negro, a professora tenta demonstrar a estrutura de um artigo de opinião. Para completar, bem ao lado da sala ocorre mais uma atividade do programa Mais Educação, um projeto da Secretaria de Educação que amplia a carga horária das instituições de ensino através de atividades esportivas e culturais. Mais: exatamente nessa tarde ocorre uma animada “pelada” com gritos e muita poeira levantada. A aula, então, se transforma num grande exercício de paciência. “É o programa Mais Educa Cão”, brinca Jhuliana.


Como se nada estivesse ocorrendo, a aula segue, firme, até às 17h30 quando então – finalmente – toca o sinal indicando o encerramento. Antes que todos se dispersem, a professora Amanda avisa: dia 5 de setembro vai ter teste. A maioria se entreolha, cara de angústia. Em alguns, a aparência é de desespero. O repórter se desobrigará da prova. Rapidamente, a sala vai esvaziando. Os alunos têm carinho pela professora. Jhuliana diz que a professora trouxe um pouco de esperança a seus colegas. “Ela nos ensinou a acreditar e lutar por aquilo que gostamos”. Amanda Gurgel não chega a ouvir o afago. Recolhe seus livros e se despede.


Fama instantânea

Desde o momento em que ganhou projeção por seu discurso inflamado em defesa da educação, em maio passado, Amanda Gurgel não parou de dar entrevistas, depoimentos e participar de eventos. “É uma coisa espantosa. Nada do que eu disse era novidade, mas ganhou uma repercussão tão grande que ainda me assusta”, confessou.


No dia seguinte à aula, já na quarta-feira, dia 24, ela participou da Jornada Nacional de Lutas, em Brasília. E esteve à frente da marcha que pede que 10% do Produto Interno Bruto, o PIB, seja destinado somente à educação. Para a viagem, todas as suas despesas foram pagas pela Central Sindical e Popular – Coordenação Nacional de Lutas (CSP-Conlutas). Ela diz que justifica suas viagens à direção, garante a reposição das aulas e ainda deixa alguns exercícios para que a coordenação pedagógica aplique nas turmas em que ministra aulas.


Não fosse o compromisso com o serviço público, ela acredita que a exposição da sua imagem poderia ser ainda maior. E para evitar possíveis críticas e não prejudicar suas turmas de língua portuguesa, ela recusa, em caso de choque com suas funções diárias, as dezenas de convites para entrevistas, palestras e participações em movimentos trabalhistas em todo o Brasil. “Eu nunca quis me expor, ainda mais desta maneira, mas vi que sou importante para contribuir com a consciência política e de classe”, ressaltou.


Desde outubro de 2010 a professora é militante do Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado, o PSTU. Mas antes disso, desde os tempos de estudante universitária, Amanda já militava no movimento sindical. Ela tentou, sem sucesso, chegar à coordenação do Sindicato dos Trabalhadores em Educação, o Sinte, em duas oportunidades (2008 e 2010). “A militância é uma obrigação a todo trabalhador, tanto quanto estar em sala de aula”, afirma.


Em 2012, ano em completa 30 anos, ela voltará a disputar a coordenação do Sinte. No entanto, com as eleições municipais batendo à porta, seu nome já é cogitado para algum cargo, principalmente no legislativo municipal. Ela garante que disputará apenas o sindicato. “Não estou preparada para esta exposição. Ainda quero amadurecer a ideia de participar das eleições. Minha luta é muito maior que a política partidária, ela está acima disso. É em relação à defesa da classe trabalhadora, pela melhoria das condições de vida dos professores e pela reforma da educação”, refletiu, falando sobre uma possível candidatura a algum cargo público em 2012.


Cinco ônibus por dia

Amanda Gurgel acorda às 5 da manhã. Saindo do bairro de Nova Parnamirim, onde mora, ela pega três ônibus para chegar ao bairro de Nova Natal, zona norte da cidade, para exercer uma dupla jornada de trabalho. Por dia são, pelo menos, cinco passagens de ônibus e um gasto mensal de R$ 220. Um consumo considerável, já que seus vencimentos não ultrapassam os R$ 2 mil mensais. Pela manhã, presta serviço como regente do laboratório de Informática da Escola Municipal Amadeu Araújo. À tarde, ao sair da primeira jornada, ela se torna professora de língua portuguesa da Escola Estadual Myrian Coeli. Não chega a percorrer 15 metros; apenas um muro divide as duas instituições.


“Lamento por vê-la em sala de aula”

Na Escola Estadual Myrian Coeli, Amanda é admirada por todos. Dos alunos aos funcionários da limpeza. “Ela tem a voz”, comentou um professor. Depois que seu o vídeo ganhou projeção nacional, a escola recebeu várias melhorias. A transferência de recursos financeiros está sendo feita em dia, alguns projetos educacionais foram implantados, dezenas de carteiras foram compradas e o problema da falta de professores foi sanado.


Para a professora Sandra Milena é um desperdício Amanda Gurgel estar em sala de aula. Professora de Artes, Sandra tem de lutar contra um grave caso de glaucoma para se manter trabalhando. “Amanda contribui tanto com a Escola, que lamentamos vê-la aqui dando aula”, contou.


Apesar das várias melhorias, a ausência de professores, principalmente de química e língua portuguesa, durante todo o ano de 2010, foi responsável pela decisão de vários alunos concluintes em não prestar o vestibular para as universidades públicas este ano. “Não temos como fazer o vestibular. Fiquei prejudicada, e pretendo apenas me formar e tentar fazer um cursinho no próximo ano”, disse Ana Beatriz dos Santos, 17, aluna do terceiro ano da escola.


Fonte: Novo Jornal

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